21.3.07

A caverna é aqui

O II Encontro Nacional da Rede Brasileira de Cosmovisão Cristã e Transformação Integral, em julho de 2006, foi particularmente prolífico. Tivemos conferências extremamente interessantes, como a ministrada por Andrew Fellows (elder de L'Abri Inglaterra) sobre fantasia e imaginação na atualidade como manifestação presente dos esquemas de pensamento idólatras e icônicas. O ídolo pretende encerrar a realidade última e causa primeira da realidade em sí mesmo, mesmo sendo criação - ou seja, usurpa o lugar do Criador -, e produz fantasia, que é o deslocamento e distanciamento da realidade.

Por sua vez, o ícone, justamente por saber que sequer pode conter a realidade última e causa primeira, faz somente remeter ao Criador, presentifica a idéia por um símbolo, apontando para além ao invés de tentar capturar a mente de quem olha. A atividade mental que gera é a imaginação, uma disposição de pensar para além dos estados atuais, mas enraizado na própria realidade, coerente e disposta a lidar com ela.

A importância desse esquema é fornecer categorias importantes para o julgamento da coerência da mensagem cristã contemporânea. Um cristianismo incapaz de lidar com a realidade só pode gerar alternativas escapistas por meio de fantasias que produzem representações não meramente equivocadas, mas enganosas, mentirosas e malígnas sobre a condição humana. Só pode oferecer um estado de entorpecimento e semi-consciência para os que ainda estão "encarnados" até que se livrem do clausura do corpo e ascendam à realidade superior da vida nos céus celestiais; e se antes, ao menos, o que se propunha era uma resistência ascética a qualquer prazer irracional mundano (vide A festa de Babette), que toma a vida terrena como ante-sala da eternidade e repleta de pegadinhas e armadilhas desclassificadoras, hoje apregoa-se o contrário ao melhor estilo comamos e bebamos, pois amanhã seremos perdoados. Essa religião faz somente produzir ídolos, é caidamente dos homens, pois este em seus estado natural é fabrica idolorum - fábrica de ídolos.

Isso é o que Darrow Miller, schaefferianamente, chamou de gnosticismo evangélico.

Contrariamente posiciona-se a imaginação. Numa mente restaurada pela revelação, ciente da veracidade da tríade criação-queda-redenção, encontra-se o conhecimento da natureza e propósitos iniciais da criação, da realidade da queda, a capacidade de avaliar seus efeitos e distorções, e esperança e graça para restaurar todas as coisas para um D'us que a tudo criou e que, em seu Filho, a tudo consigo reconciliará. É, também, capaz de avaliar e projetar, presentificar ao invés de ausentar por fuga. A imaginação celebra a criação por causa do Criador, fixa os pés na realidade por saber que é em propósito boa. Sobretudo: sabe que queda e criação não são equivalentes.

O problema é que isso exige discípulos despertos, ativos, construtores e envolvidos em todas as esferas da vida - porque todas devem ser rendidas à Soberania de D'us. No nosso caso, brasileiro, exige a desconstrução de boa parte de nosso evangelicalismo. Exige que a "fina camada escura que cobre a realidade", as ideologias, como diria Marx, seja levantada revelando toda a tristesa, deformação, queda e pecado, mas ao mesmo tempo revelando a beleza divina do Evangelho que é Verdade Total (referência o excepcional livro de Nancy Pearcey) de e para toda a realidade (não somente um conjunto de verdades religiosas, como disse Schaeffer) capaz de transformar e santificar - e essa beleza só se manifesta na medida em que transforma, na medida em que toca o terror de nossa situação, se revela ao operar, ao fazer, e não na mera conteplação.

Isso quer dizer que a Vontade Divina é a redenção de todas as coisas. Logo o Evangelho é remédio para todos os males, potente o suficiente para curá-los todos. O engraçado é que isso, ao invés de trazer esperança e alegria, em muitos provocou e provoca revolta. No que Olavo de Carvalho e outros chamam de típica atitude pessimista, depressiva e ressentida dos brasileiros, levantou-se a acusação de que esse tipo de pregação pretende dizer que um certo grupo, de posse dessa "narrativa", detém conhecimento e poderes para resolver e consertar o mundo. Cunhou-se até termo jocoso: Genebra intelectual.

Ou seja, pra certas gentes tupiniquins (e não são poucas), a verdadeira posição dos filhos de D'us é o lugar da derrota, resignação e apatia. A Igreja de um Evangelho poderoso assim é escandalo para esses ouvidos. É uma espécie de Império, de bushismo ou chauvinismo religioso e intelectual. A antítese em relação à mente mundana é fundamentalismo, portanto, mas a síntese simbionte com o século é piedosa e própria da atitude cristã... patético.

Sinceramente, nessas horas, eu não sei bem o que fazer. Talvez, se não me restassem esperanças, fizesse eu como Stefan Zweig, que após escrever que o Brasil era o país do futuro meteu uma bala na cachola. Com cristãos assim, quem precisa de perseguidores? E o que é mais triste: saber o que vai acontecer com quem enterra os talentos, esconte as lâmpadas e enganam os pequeninos.

Lembra do que aconteceu com o camarada que fugiu da caverna quando voltou pra falar com os companhiros na fábula de Platão?

3 Comments:

Blogger Guilherme de Carvalho said...

Pois é, André...

O triunfalismo é indiscutivelmente um grande perigo para a igreja. E, em tempos de teologia da prosperidade, é tão importante combater o triunfalismo...

Entretanto essa bandeira se tornou uma conveniente justificativa para o pecado da conivência. É aquela graça barata. Não fazemos nada para a reforma moral da sociedade para não sermos tachados de fundamentalistas, constantinianos, etc.

Só Jesus...

segunda-feira, abril 09, 2007 8:41:00 PM  
Blogger André Tavares said...

Guilherme,

complicado isso, não? espero que as coisas melhorem com o ajuntamento de quem quer fazer reforma...

terça-feira, abril 10, 2007 11:02:00 AM  
Anonymous Anônimo said...

Oi André, tudo bem?

Sou um dos fraudinhas. Ah! li um texto seu aí falando de suposta falta de leitores. Bom, não sou de ficar muito na internet, mas quando lembro leio seu blog!

Entendo o que vc diz aí, juro. E estou tentando me encontrar, em silêncio, também juro. É que às vezes tenho uma impressão estranha de que Cristo pode ser o Caminho, a Verdade e a Vida sem que seja um centro de gravidade para tudo. Aliás, aí parece estar o que Ele tem de diferente e especial. Eu ainda creio que o Evangelho é a restauração do mundo em potencial, mas desejo ver Cristo mais humano, relacional, flexível, poético do que estático, onipotente e tudo mais. De uma maneira ou de outra, não parece tão fácil conciliar o Cristo dos evangelhos com nossos "Cristos".

Um abraço!! até!

terça-feira, agosto 28, 2007 7:36:00 PM  

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