22.3.07

Não é um conto

Andavam sobre dois pés. Levemente curvados, e sempre carregando alguma coisa. Às vezes encontravam outras coisas mais ou menos interessante no caminho - isso na verdade não importava: tudo era monótono, mas momentameamente novidade quando catado... até que percebida a igualdade e inutilidade. Mas o monótono cumpre a função de regularidade.

Caminhar sobre dois pés não era novidade - na verdade não conheciam ninguém que não o fizesse assim. Mas gostavam de se lembrar que podiam fazer isso: qualquer coisa que marcasse alguma semelhança com os demais. Às vezes sonhavam em caminhar como os cães, e rolar na grama serenada. Mas já não havia grama, e sereno era algo muito perigoso: as convulsões não chegavam a matar, mas deixavam muita dor quando passavam.

A dor era por causa dos pés? Se andassem como os cães seriam mais felizes? Mas tentar, outra vez, ser como os outros era uma completa impossibilidade - demorado e terrível demais. E se deixassem de levar coisas? Nem pensar: aí precisariam de casas, e ter casas era dar motivos para precisar andar fugido, e, agora, ao menos, andavam porque queriam. E a casa são as coisas que se carrega. Não há nada para carregar - mas andar sem nada causa mais dor do que aquela dos pés. O melhor é aguentar, e mordiscar os pés como os cães.

As cinco pedras nos bolsos seriam o suficiente pra espantar os malvados. Mas atirá-las era correr o risco de não poder lançar os fundamentos das casas quando isso fosse possível. E, imagine!, ter grama e orvalho e não poder constriuir casa! Que se agüente os malvados, como a dor nos pés. E as pedras não são como as coisas... não são monótonas, mas são sempre as mesmas; como parte que vale como todo: perdê-las era voltar a ser como os cães. Mas não era exatamente isso o que às vezes queriam?