30.11.06

Pro inferno com o mesmo

Eu gosto de Gilberto Freire. Acho Casa Grande & Senzala a melhor descrição da civilização brasiliana, e não percebo alí nenhum crime de romantismo do qual acusam o senhor de Apipucos. Gilberto foi cru, mas doce; e o que não suportamos é perceber que por detrás de certa crueldade podem se esconder ternuras. Esse jogo de luz e sombras é intolerável para a intelligentsia modernosa e esquerdista que dominou as universidades brasileiras, que agora prefere lidar com categorias, métodos e teorias estadunidenses para o problema da interracialidade, raça e identidade: preferem a clivagem do que a mistura (confira este post); como insiste muito apropriadamente minha orientadora: teimam no tema da identidade, embora todo princípio esteja na diferença. Não se iluda, meu caro leitor, a clivagem não diferencia, mas cria uma comunidade de iguais - como se fosse isso que estabelecesse a identidade (agora no sentido de identificação). Se eu lí bem Stuart Hall, identidade é relacional - se faz pela percepção e relação da e na diferença: a mistura é muito mais poderosa para produzir idéias sobre sí mesmo.

Também gosto de Artur Ramos, esse sujeito extraordinário que, dizem, inventou o termo "democracia racial". Bom, o que muito pouca gente sabe é que Ramos capturou essa categoria nativa que surgira no imaginário brasiliero no início do século XX... Lembra dessa campanha da Benetton:
Pois é... eu não consegui achar, para provar o argumento aqui, mas em O negro na civilização brasiliera, ou em O negro brasileiro, Artur Ramos lança mão de recursos de antropologia visual, e nos brinda com fotografias "de populares", demostrando a "união brasileira entre brancos e negros"; e, pasme, há uma fotografia da dácade de 30, cuja disposição é, grosso modo, exatamente esta da foto da Benetton... Mas na década de 30, e sem esses chifrinhos (ou essa forma a que minha mente identifica como chifres) no cabelo da criança negra. Havia a necessidade pulsante de plasmar modelos distintos nesse abraço - a civilização dos trópicos ainda era vista como objeto de ciência de boa devoção, uma possibilidade.

Provavelmente, e aqui sou eu quem digo, nos princípios da modernização brasileira, juntamente com a necessidade política do Estado Novo de apressar a unidade nacional, usou-se expressões como essas para demostrar o diferencial da identidade brasileira. Entretanto, toda vez que é preciso lançar mão de provas, alguma coisa já está perdida; toda vez que a propaganda de massa entra em campo, saiba: alguma coisa anda mal, ou há algo de podre no Reino da Dinamarca (peloamordedeus, leiamos a Escola de Frankfurt!). Como diria Gilberto Freire, já havíamos perdito os encantos coloniais, a derrocada o patriarcalismo já acontecera, e a República era a conseqüencia de nossas aspirações modernas.

O século XX, essa coisa que pra nós começou com a Lei Áurea e a República, roubou-nos a inocência e originalidade d'outros tempos. Não, senhores, não estou sendo romântico, nem ingênuo, nem falando de Eldorado ou Shangri-la. Estou falando de uma possibilidade que nos oferece a nossa origem: a mistura, do português - que não era um europeu há muito tempo, era mouro, mameluco (do norte da África, não a mistura do branco e índio aqui, que também recebeu esse nome) e árabe, celtíbero, franco, judeu sefardita (muito judeu sefardita) -, do africano banto, iorubá, imalê, etc. -, do índio.

E não há como misturar sangue, suor, sêmem, saliva, lágrima, sem que também se misturem idéia, categoria, palavra, mito, mundo... Desses encontros trágicos, sofridos, sôfregos, arfantes, desejados e ambíguos surgiu algo diferente, senhores, não duvidemos disso.

E é por isso que eu também gosto de Jorge Mautner. Mautner é aquela figura estrangeira, que pelo estranhamento percebe muito mais e deixa-se maravilhar pelo que há aqui. Judeu, filho de pais austríacos, sua família fugiu do Nazismo na Europa e veio para o Brasil, e ele nasceu e cresceu no Rio de Janeiro. Mautner é uma espécie de dínamo de identidade multicomposta, em que tudo o que o Brasil é, ou poderia ser em termos de genialidade, se fixou. Seu pai era uma figura romântica, daquelas que ainda puderam ler tudo o que era importante em sua época (de filosofia a física), e participou ativamente na formação do filho. Sua mãe era outra figura de cultura. O padrasto, músico alemão e protestante foi fundamental para a incersão de Mautner no cenário cultural brasileiro das décadas de 50 e 60. Sua babá por toda a infância foi uma negra filha de santo, com quem aprendeu da cultura e música negras. Seus amigos de infância eram outros garotos judeus e negros cercados pela turba bárbara da classe média intolerante.

Seus feitos e resultado de tudo isso? Bom, aos 12 anos lançou as bases do Partido do Caos, que estava fundado quando tinha 16 - com manifesto e tudo mais. O Partido do Caos foi o fundamento para o Tropicalismo de Caetano, Gil e Tom Zé, orienteou muita gente que foi lutar na esquerda, seja no Partidão, seja na Ação Pupular ou outra fragmentação da esquerda política ou artística. Ganhou o Jabutí aos 21, com Deus da chuva e da morte (1962), exilado em 65, trabalhou na ONU, e ao ficar conhecido nos meio artísticos e intelectuais no exterior, muito ajudou a fazer conhecida a cultura brasileira - a manifestação cultural do século XX, sem dúvida. Foi por causa de gente como Mautner que a fronteira entre música erudita e popular ("Arací de Almeida é igual a Bethoven, embora ligeiramente superior...") foi anulada ou transgredida, que expressões alargaram imensamente horizontes e perspectivas, fornecendo categorias que possibiltaram vislumbrar tantas e outras possibilidades na música, na literatura, no teatro, no cinema... uma nova filosofia da vida foram fundidas.

Mautner é um exemplo, um caso exemplar de fusão. De com-fusão, como diz minha supracitada orientadora. Um gênio forjado pelo horror do Holocausto, consolado pelos embalos na ternura do seio africano, erguido nas bases do pensamento ocidental e cumpridor da mitsvá de estranhar o mundo... É genial em virtude de sua condição de fulcro, de ponto de encontro de diversidades. Conflito? Não. Conciliação.

A Brasil produziu a maior expressão cultural do século XX. O reconhecimento disso ainda virá, e não começará por nós, nem seus efeitos foram plenamente sentidos ou assimilados pelo mundo. Ainda temos a terrível barreira da língua... falar português num mundo de senhores anglo-germânicos é o cúmulo da ingratidão. Podemos estar próximo da indicação de Kuyper, aquele senhor holandes do século XIX que ousou dizer, nos tempos áureos da eugenia e teorias raciais, que a chave do desenvolvimento civilizacional é a miscigenação (por favor, alguém me corrija se eu estiver equivocado). Quem sabe aqui tenhamos tido a oportunidade de vislumbrar, para além da crueldade, o efeito oposto de Babel (que confundiu e separou), unindo pela fusão.

Uma das coisas mais belas da Bíblia é a composição miscigenada da genealogia do Messias. Sua Igreja (seu corpo!) é multiétnica, pluricolorida, canta e exclama em poliplurimuitaslinguas (ô vontade de ser Guimarães Rosa nessa hora...). Mesmo sua nação, Israel, é askenazi, sefarad, mizrahi, falasha, bnei menashé, falante de yiddish, ladino, kayla, tetuani, dzhidi, tat, mahati... wow! Uma antiga tradição judaica diz, e embora não seja fato, é bastante ilustrativo, que depois de receber a Torá, Moisés sobre ela se debruçou para traduzí-la para as 40 línguas do mundo (toda vez que o pensamento judaico fala de 40, refere-se a todas as coisas ou todas as nações...), dispondo a todos os homens o que D'us falara a Israel... sem que precisassem se tornar Israel, deixando de ser quem eram. Não é besteira dizer que Atos trata da mesma maneira o mesmo assunto.

Que diremos, pois, frente a essas coisas? Por qual razão não somos nós (vocês sabem quem) mais Mautner do que Mautner? Por que produzimos coisas como o apartheid? Bom, muita gente já fez essas perguntas, e muito poucos se arriscaram em respostas. Tenho uma intuição: sejamos menos orgulhosos, e aprendamos com o Brasil. É, com o Brasil, do qual mais nos envergonhamos do que conhecemos. Quem topa?

nota: essa imagens são de campanhas da Benetton encontradas pelo Google. Reitero que não são inovadoras, uma vez que esse discurso estava presente em imagens produzidas no Brasil no início do século XX. Pena que não consegui achar essa fotografias brasileiras...