Hoje no jornal...
Uma das coisas que mais me impressiona em Dostoiévski é sua capacidade de demonstrar e provocar perplexidade frente ao problema do mal, e do mal aos que são bons. A imágem da Rússia que se formou na minha mente (via Dostoiévski) foi de um lugar extremamente cruel sobretudo para uma criança ou um jovenzinho - e isso não é fortuito. O sofrimento do inocente reside no cerne do universo literário desse escritor - juntamente com outros dilemas, é verdade. Em Os Irmãos Káramasoff (prefiro a transliteração que a aportuguesação dos sobrenomes russos), o relato dos sofrimentos de uma criança nas mõas de seus pais é aterrador - como explicar isso de uma criança sofrer? Para além disso, o que torna a narrativa/descrição ainda mais cortante é a forma como o autor desfia os processos mentais do inocente sofredor tentando entender o por quê do sofrimento punitivo que lhe é infligido, num processo que chega ao indiscritível terror de chegar à conclusão que a causa é supra-racional, está numa dimensão governadas por potestades incompreensíveis, e inacessíveis: não há razão compreensível, só o terror na solidão e o choro amarrado na garganta.
Numa introdução a "O Idiota", numa edição da Jorge Zahar, o tradutor (o nome me escapa agora) apresenta como o romance foi concebido: no século XIX a Rússia instituiu um sistema de tribunais locais para julgar casos pequenos. Isto estava diretamente ligado ao esforço modernizador das instituições na Rússia, uma vez que os ocidentalistas ganharam parte da disputa com os eslavófilos, e parte do empreendimento era intensificar a presença do Estado e interferir na estrutura das comunidades. Quando esses tribunais se estabelecem, o que emerge é justamente o que qualquer modernos nomearia como "crueldade tradicional": uma série de casos e crimes típicos de uma estrutura social medieval julgados por tribunais orientados por uma noção de direito moderno. E todo esse material chocante alimentou outra instituição da modernidade: os jornais. Muitos deles se dedicavam à cobertura zelosa dos julgamentos daqueles tribunais, de forma que quase poderíamos compará-los aos nossos tablóides e programas policiais na televisão e rádio. Foram dessas "reportagens" que Dostoiévski recolhia grande parte de seu repertório de tragédias - e foi justamente de um desses casos que surgiu o "mote" para O Idiota.
Não temos mais um Dostoiévski - e ainda poucos leitores de seus livros (apesar de muita gente gostar de citá-lo, acompanhado por um franzir de testa e olhar compenetrado...); nossa atitude blasè se intesificou e o estranhamento frente ao sofrimento é um luxo ao qual não nos podemos dar. Mas os jornais continuam fornecendo uma enxorrada de fatos terríveis. Hoje, a Folha de São Paulo (exclusivo para assinantes, mas prometo que vou passar a usar fontes de agências de conteúdo livre ao público...) nos contou a história de Daniele, mãe de 21 anos de uma menininha que sofria de uma doença não identificada. A criança era tratada no Hospital Universitário de Taubaté, onde um quintanista de Medicina estuprou Daniele - e a ameçou, dizendo que ficasse calada por que precisava do hospital para tratar a filha. Depois de mais um crise da filha, peregrinou em busca de um encaminhamento que permitisse outro atendimento no hospital, mas a menina não resistiu, e morreu. Uma médica, Dra. Érika, a acusou de envenear a criança (um laudo teria encontrado vestígios de cocaína na lingua e mamadeira da filha). Daniele ficou presa 37 dias, e foi gravemente espancada por outras companheiras de cela. Ontem, mais de um mês depois, outro laudo confirmou que a substância não era cocaína (provavelmente se trata de um remédio em forma de pó branco, que fazia parte do tratamento da menina) - Daniele é inocente, e foi solta.
Perdera a filha, depois de muito tempo de sofrimento, e antes de pode pranteá-la, foi acusada, julgada e punida por meia dúzia de incompetentes que se acham investídos de poderes de um tipo bastante tradicional. O Estado aqui fez seu papel na ausência. A impressa fez o seu de denúncia e cobertura para as massas. E a história de Daniele foi contada por blogueiros. Dostoiévski está morto, num ataúde em minha prateleira, ao lado do computador em que escrevo... mas seu fantasma sussura ao meu ouvido dizendo que não há explicação.
Numa introdução a "O Idiota", numa edição da Jorge Zahar, o tradutor (o nome me escapa agora) apresenta como o romance foi concebido: no século XIX a Rússia instituiu um sistema de tribunais locais para julgar casos pequenos. Isto estava diretamente ligado ao esforço modernizador das instituições na Rússia, uma vez que os ocidentalistas ganharam parte da disputa com os eslavófilos, e parte do empreendimento era intensificar a presença do Estado e interferir na estrutura das comunidades. Quando esses tribunais se estabelecem, o que emerge é justamente o que qualquer modernos nomearia como "crueldade tradicional": uma série de casos e crimes típicos de uma estrutura social medieval julgados por tribunais orientados por uma noção de direito moderno. E todo esse material chocante alimentou outra instituição da modernidade: os jornais. Muitos deles se dedicavam à cobertura zelosa dos julgamentos daqueles tribunais, de forma que quase poderíamos compará-los aos nossos tablóides e programas policiais na televisão e rádio. Foram dessas "reportagens" que Dostoiévski recolhia grande parte de seu repertório de tragédias - e foi justamente de um desses casos que surgiu o "mote" para O Idiota.
Não temos mais um Dostoiévski - e ainda poucos leitores de seus livros (apesar de muita gente gostar de citá-lo, acompanhado por um franzir de testa e olhar compenetrado...); nossa atitude blasè se intesificou e o estranhamento frente ao sofrimento é um luxo ao qual não nos podemos dar. Mas os jornais continuam fornecendo uma enxorrada de fatos terríveis. Hoje, a Folha de São Paulo (exclusivo para assinantes, mas prometo que vou passar a usar fontes de agências de conteúdo livre ao público...) nos contou a história de Daniele, mãe de 21 anos de uma menininha que sofria de uma doença não identificada. A criança era tratada no Hospital Universitário de Taubaté, onde um quintanista de Medicina estuprou Daniele - e a ameçou, dizendo que ficasse calada por que precisava do hospital para tratar a filha. Depois de mais um crise da filha, peregrinou em busca de um encaminhamento que permitisse outro atendimento no hospital, mas a menina não resistiu, e morreu. Uma médica, Dra. Érika, a acusou de envenear a criança (um laudo teria encontrado vestígios de cocaína na lingua e mamadeira da filha). Daniele ficou presa 37 dias, e foi gravemente espancada por outras companheiras de cela. Ontem, mais de um mês depois, outro laudo confirmou que a substância não era cocaína (provavelmente se trata de um remédio em forma de pó branco, que fazia parte do tratamento da menina) - Daniele é inocente, e foi solta.
Perdera a filha, depois de muito tempo de sofrimento, e antes de pode pranteá-la, foi acusada, julgada e punida por meia dúzia de incompetentes que se acham investídos de poderes de um tipo bastante tradicional. O Estado aqui fez seu papel na ausência. A impressa fez o seu de denúncia e cobertura para as massas. E a história de Daniele foi contada por blogueiros. Dostoiévski está morto, num ataúde em minha prateleira, ao lado do computador em que escrevo... mas seu fantasma sussura ao meu ouvido dizendo que não há explicação.
2 Comments:
Eu mesmo fui que praticamente xinguei essa mãe ao ler a notícia. Fico chocado com essa história toda.
Mas quem é que não xingaria, não é mesmo? O problema é como os jultamentos públicos (não formalmente institucionais) são feitos: a Dra. Érika ou quem quer que seja precisava punir por antecipação a Daniele? Se temos fome de justiça, ao menos se espere o prato ficar pronto...(isso ficou meio Pulp Fiction). Se a moça era acusada de um crime hediondo e ainda não havia provas suficientes, ela não deveria ter ficado numa cela com outras mulheres (todo mundo sabe como as coisas funcionam numa prisão). É uma sucessão de erros causados por antecipações. Isso não é justiça - é vingança. Muito triste.
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