30.11.06

Pro inferno com o mesmo

Eu gosto de Gilberto Freire. Acho Casa Grande & Senzala a melhor descrição da civilização brasiliana, e não percebo alí nenhum crime de romantismo do qual acusam o senhor de Apipucos. Gilberto foi cru, mas doce; e o que não suportamos é perceber que por detrás de certa crueldade podem se esconder ternuras. Esse jogo de luz e sombras é intolerável para a intelligentsia modernosa e esquerdista que dominou as universidades brasileiras, que agora prefere lidar com categorias, métodos e teorias estadunidenses para o problema da interracialidade, raça e identidade: preferem a clivagem do que a mistura (confira este post); como insiste muito apropriadamente minha orientadora: teimam no tema da identidade, embora todo princípio esteja na diferença. Não se iluda, meu caro leitor, a clivagem não diferencia, mas cria uma comunidade de iguais - como se fosse isso que estabelecesse a identidade (agora no sentido de identificação). Se eu lí bem Stuart Hall, identidade é relacional - se faz pela percepção e relação da e na diferença: a mistura é muito mais poderosa para produzir idéias sobre sí mesmo.

Também gosto de Artur Ramos, esse sujeito extraordinário que, dizem, inventou o termo "democracia racial". Bom, o que muito pouca gente sabe é que Ramos capturou essa categoria nativa que surgira no imaginário brasiliero no início do século XX... Lembra dessa campanha da Benetton:
Pois é... eu não consegui achar, para provar o argumento aqui, mas em O negro na civilização brasiliera, ou em O negro brasileiro, Artur Ramos lança mão de recursos de antropologia visual, e nos brinda com fotografias "de populares", demostrando a "união brasileira entre brancos e negros"; e, pasme, há uma fotografia da dácade de 30, cuja disposição é, grosso modo, exatamente esta da foto da Benetton... Mas na década de 30, e sem esses chifrinhos (ou essa forma a que minha mente identifica como chifres) no cabelo da criança negra. Havia a necessidade pulsante de plasmar modelos distintos nesse abraço - a civilização dos trópicos ainda era vista como objeto de ciência de boa devoção, uma possibilidade.

Provavelmente, e aqui sou eu quem digo, nos princípios da modernização brasileira, juntamente com a necessidade política do Estado Novo de apressar a unidade nacional, usou-se expressões como essas para demostrar o diferencial da identidade brasileira. Entretanto, toda vez que é preciso lançar mão de provas, alguma coisa já está perdida; toda vez que a propaganda de massa entra em campo, saiba: alguma coisa anda mal, ou há algo de podre no Reino da Dinamarca (peloamordedeus, leiamos a Escola de Frankfurt!). Como diria Gilberto Freire, já havíamos perdito os encantos coloniais, a derrocada o patriarcalismo já acontecera, e a República era a conseqüencia de nossas aspirações modernas.

O século XX, essa coisa que pra nós começou com a Lei Áurea e a República, roubou-nos a inocência e originalidade d'outros tempos. Não, senhores, não estou sendo romântico, nem ingênuo, nem falando de Eldorado ou Shangri-la. Estou falando de uma possibilidade que nos oferece a nossa origem: a mistura, do português - que não era um europeu há muito tempo, era mouro, mameluco (do norte da África, não a mistura do branco e índio aqui, que também recebeu esse nome) e árabe, celtíbero, franco, judeu sefardita (muito judeu sefardita) -, do africano banto, iorubá, imalê, etc. -, do índio.

E não há como misturar sangue, suor, sêmem, saliva, lágrima, sem que também se misturem idéia, categoria, palavra, mito, mundo... Desses encontros trágicos, sofridos, sôfregos, arfantes, desejados e ambíguos surgiu algo diferente, senhores, não duvidemos disso.

E é por isso que eu também gosto de Jorge Mautner. Mautner é aquela figura estrangeira, que pelo estranhamento percebe muito mais e deixa-se maravilhar pelo que há aqui. Judeu, filho de pais austríacos, sua família fugiu do Nazismo na Europa e veio para o Brasil, e ele nasceu e cresceu no Rio de Janeiro. Mautner é uma espécie de dínamo de identidade multicomposta, em que tudo o que o Brasil é, ou poderia ser em termos de genialidade, se fixou. Seu pai era uma figura romântica, daquelas que ainda puderam ler tudo o que era importante em sua época (de filosofia a física), e participou ativamente na formação do filho. Sua mãe era outra figura de cultura. O padrasto, músico alemão e protestante foi fundamental para a incersão de Mautner no cenário cultural brasileiro das décadas de 50 e 60. Sua babá por toda a infância foi uma negra filha de santo, com quem aprendeu da cultura e música negras. Seus amigos de infância eram outros garotos judeus e negros cercados pela turba bárbara da classe média intolerante.

Seus feitos e resultado de tudo isso? Bom, aos 12 anos lançou as bases do Partido do Caos, que estava fundado quando tinha 16 - com manifesto e tudo mais. O Partido do Caos foi o fundamento para o Tropicalismo de Caetano, Gil e Tom Zé, orienteou muita gente que foi lutar na esquerda, seja no Partidão, seja na Ação Pupular ou outra fragmentação da esquerda política ou artística. Ganhou o Jabutí aos 21, com Deus da chuva e da morte (1962), exilado em 65, trabalhou na ONU, e ao ficar conhecido nos meio artísticos e intelectuais no exterior, muito ajudou a fazer conhecida a cultura brasileira - a manifestação cultural do século XX, sem dúvida. Foi por causa de gente como Mautner que a fronteira entre música erudita e popular ("Arací de Almeida é igual a Bethoven, embora ligeiramente superior...") foi anulada ou transgredida, que expressões alargaram imensamente horizontes e perspectivas, fornecendo categorias que possibiltaram vislumbrar tantas e outras possibilidades na música, na literatura, no teatro, no cinema... uma nova filosofia da vida foram fundidas.

Mautner é um exemplo, um caso exemplar de fusão. De com-fusão, como diz minha supracitada orientadora. Um gênio forjado pelo horror do Holocausto, consolado pelos embalos na ternura do seio africano, erguido nas bases do pensamento ocidental e cumpridor da mitsvá de estranhar o mundo... É genial em virtude de sua condição de fulcro, de ponto de encontro de diversidades. Conflito? Não. Conciliação.

A Brasil produziu a maior expressão cultural do século XX. O reconhecimento disso ainda virá, e não começará por nós, nem seus efeitos foram plenamente sentidos ou assimilados pelo mundo. Ainda temos a terrível barreira da língua... falar português num mundo de senhores anglo-germânicos é o cúmulo da ingratidão. Podemos estar próximo da indicação de Kuyper, aquele senhor holandes do século XIX que ousou dizer, nos tempos áureos da eugenia e teorias raciais, que a chave do desenvolvimento civilizacional é a miscigenação (por favor, alguém me corrija se eu estiver equivocado). Quem sabe aqui tenhamos tido a oportunidade de vislumbrar, para além da crueldade, o efeito oposto de Babel (que confundiu e separou), unindo pela fusão.

Uma das coisas mais belas da Bíblia é a composição miscigenada da genealogia do Messias. Sua Igreja (seu corpo!) é multiétnica, pluricolorida, canta e exclama em poliplurimuitaslinguas (ô vontade de ser Guimarães Rosa nessa hora...). Mesmo sua nação, Israel, é askenazi, sefarad, mizrahi, falasha, bnei menashé, falante de yiddish, ladino, kayla, tetuani, dzhidi, tat, mahati... wow! Uma antiga tradição judaica diz, e embora não seja fato, é bastante ilustrativo, que depois de receber a Torá, Moisés sobre ela se debruçou para traduzí-la para as 40 línguas do mundo (toda vez que o pensamento judaico fala de 40, refere-se a todas as coisas ou todas as nações...), dispondo a todos os homens o que D'us falara a Israel... sem que precisassem se tornar Israel, deixando de ser quem eram. Não é besteira dizer que Atos trata da mesma maneira o mesmo assunto.

Que diremos, pois, frente a essas coisas? Por qual razão não somos nós (vocês sabem quem) mais Mautner do que Mautner? Por que produzimos coisas como o apartheid? Bom, muita gente já fez essas perguntas, e muito poucos se arriscaram em respostas. Tenho uma intuição: sejamos menos orgulhosos, e aprendamos com o Brasil. É, com o Brasil, do qual mais nos envergonhamos do que conhecemos. Quem topa?

nota: essa imagens são de campanhas da Benetton encontradas pelo Google. Reitero que não são inovadoras, uma vez que esse discurso estava presente em imagens produzidas no Brasil no início do século XX. Pena que não consegui achar essa fotografias brasileiras...

29.11.06

Transformações climáticas e os efeitos no Brasil

No site brasileiro do Greenpeace está disponível um documentário, com mais de uma hora de duração, a respeito dos efeitos das transformações climáticas no planeta, sobretudo devido ao aquecimento global, sobre o Brasil. Conjugando explicações das causas no âmbito planetário com exemplos e estudos do impacto nos diferentes paisagens brasileiras (sul, centro-nordeste e norte-centroeste), fica terrivelmente claro que o que tem acontecido não são alertas ou indicações, mas padrões climáticos alterados e estabelecidos. A mudança no sistema climático já é uma realidade - e estamos nos aproximando daquilo que os especialistas chamam de ponto sem retorno, ou seja, dali pra frente não haverá recursos nem esforços que evitem o colapso do planeta.

Para ilustrar, podemos citar exemplos presentes no documentários:
  • Na região Sul, um dos eventos mais surpreendentes tomou lugar, quando houve o primeiro registro de furacão no Atlântico Sul - o Catarina - que atingiu a costa do estado de Santa Catarina, supreendendo moradores e autoridades. O Atlântico Sul, até hoje, era considerado como uma espécie de paraíso em termos climáticos, sem eventos extremos - agora, com o aquecimento de suas águas, será um provável palco de fenômenos climáticos violentos. Não existem estruturas civis ou estatais para lidar com essa nova situação.
  • Ainda na região Sul, um estado de anomalia climática faz com que se alternem períodos curtos de chuvas intensas - provocando enchentes e tempestades violentas - e prolongadas e severas estiagens; isso tem arruinado a produtividade agrícula e pecuária, que reverbera por toda a cadeia socio-econômica, colocando em risco a distribuição, qualidade e preços de alimentos, êxodo rural e danos sérios à economia (o PIB do Rio Grande do Sul regrediu por efeito dos prejuízos no campo nos últimos 4 anos).
  • No Nordeste, também por conta do aquecimento do Atlântico Tropical, as temperaturas tendem a atingir picos de 40 graus (onde antes alcançavam 30), e associado com a exploração mineral, da má utilização de parcos recursos hídricos, a destruição da vegetação nativa - a caatinga - aceleram um processo de desertificação do semi-árido nordestino, impossibilitando, vez por todas, a sobrevivência das populações locais, que deverão migrar.
  • As mudanças climáticas afetam de maneira aguda o complexo amazônico: há uma tendência à diminuição da umidade, que torna a floresta (um grande depósito de CO2) ainda mais vulnerável a queidadas, liberando mais gás cabônico na atmosfera, causando mais alteração no clima, baixando a umidade na região da floresta, que fica ainda mais vulnerável às secas e queimadas... um ciclo vicioso. Um dos eventos mais surpreendentes das últimas décadas foi a estiagem que secou rios na maior bacia hidrográfica do mundo...
  • O Brasil é o 4ᵒ maior emissor de CO2 do planeta. Curiosamente, a maior fonte de emissão são justamente as queimadas na florestas amazônica - 75% do total de emissões. Ou seja, nosso maior problema ambiental hoje é a destruição das florestas e vegetação nativa - Amazônia, Pantanal, Caatinga, Cerrado, Mata-Atlântica e Pampas...
A iniciativa do Greenpeace é de grande ajuda ao demonstrar como o problema está no nosso quintal. Kioto e Haiti são aqui...

Nota: agradeço à Lilian Renna pela dica sobre o doc.

24.11.06

Sobre Mito e Realidade

Antes de iniciar o texto, cabe dizer que não se trata de uma resenha sobre o livro de Mircea Eliade, ou de considerações maduras sobre Lévi-Strauss - apesar de este e aquele serem citados ou estajam presentes aqui. Deveras, esse é um texto-resposta ao post Aforismos... de Marcel Camargo - ou um comentário longo demais para ser postado em seu blog. Portanto, não seria má idéia conferir o texto do Marcel.

O mito é o resultado da percepção de uma diferença insuperável, uma resposta estrutural da cognição humana para o problema da distinção, da antítese. O pensamento mitológico, então, fixa-se como uma tentativa de plasmar no entendimento uma distinção insuperável, sua orígem e "gestão" na realidade, tal como percebida. Se temos a liberdade de fazer (e, por que não?) um híbrido entre Lévi-Strauss e Weber (tomara que nenhum antropólogo profissional leia o que estou escrevendo), o mito constitui-se como um mapa cognitivo (como bem nos disse Marcel) que localiza distinções e estabelece relações, e que é sobreposto à realidade caótica (aqui temos Weber) sem qualquer ordem preestabelecida (essa forma ortográfica modernosa está no Houaiss) ou que a cognição humana seja capaz de compreender/perceber. Precisando, assim, lançar mão de mecanismos para que conhecimento e relação sejam possíveis - tanto no mundo da Natureza quanto no da Cultura -, é de posse desse aparato mental que o indivíduo, ou o sujeito da ação, pode atribuir sentido (compreender e ser compreendido).

Veja como é interessante a origem kantiana comum entre um estruturalista (Lévi-Strauss) e um hermeneuta (Weber). O mundo permanece alguma coisa da ordem do inefável e incompreensível - o que as estruturas da mente humana fazem é como escanear o terreno, traçar paralelas transversais e horizontais: como um mapa (bem nos disse o Marcel, outra vez). O sentido, portanto é fruto da atividade da estrutura ou aparelhagem humana - seja como produto da atividade coletiva, seja da interpretação do sujeito.

Resumindo toscamente: a realidade é incompreensível e inalcansável (está fora do escopo da razão); tudo sentido, ordem, distinção ou lógica são produtos da atividade cognitiva humana - e, como tal, "irreal": representação.

Ora, isso está embebido no pessimismo moderno sobre as possibilidade do conhecimento (seria Kant o primeiro pós-moderno? brincadeirinha...). Entretanto, discernir a fragilidade da razão humana, como bem o fizeram Locke, Hume, Kant, Schopenhauer, Kierkgaard, Heidegger e, ...bom, de Heidegger pra frente isso é consenso, e quase todo o staff concordaria com isso. Quanto a tragédia da racionalidade (que não pode atribuir sentido apropriado para tudo), ninguém melhor me vem à memória que Nietzsche e o supracitado Weber.

Concordando com a crítica moderna à razão, e com a visão pessimisma dos trágicos, teríamos apenas que discordar de sua solução: a resignação. Dela desdobra-se o que Weber chamou de pluralismo de valores, e dele, suas opções: um compromisso inabalável com o geist de uma esfera e seu esquema ético (a ética da responsabilidade weberiana), ou o relativismo estético (Weber faz menção, genialmente, à incapacidade do homem moderno de emitir juízos morais e éticos - ou de valor -, substituíndo-os por juízos estéticos: o mal, agora, é, no máximo, uma questão de gosto - mau gosto).

Do príncipe Míshkin (cf. O Idiota de Dostoiévski) a Rubem Alves todos exclamam: o belo salvará o mundo! O romantismo tentou reviver o poder criativo e verdadeiro do belo, da potência seminal do mito - ouça Wagner e tente não perceber isso. Bom, mas aí veio Duchamps, a musique concrète, etc.: a desconstrução do belo jogou-nos no abismo da indistinção, na incapacidade de exercer juízo, de atribuir sentido - na irracionalidade. Mas tudo estará assim, tão cuidadosamente desconstruído?

Guardaremos aqui nossas dúvidas para outro eventual texto. Mas mesmo alguns dos ditos "desconstrutores" apontam para uma pedra fundamental, mas sem tantas pretenções quanto Descartes: a guardiã do discurso (senão da verdade) é alguma teologia. Em concordância com isso, temos os filósofos neocalvinistas como Dooyeweerd e Wolterstorff, que não são desconstrucionistas, mas críticos da racionalidade ocidental e proponentes de uma filosofia teísta e bíblica, dito grosseiramente.

Mas retornando ao tema do mito, uma posição biblicamente coerente diria que sua premissa está errada. Relembrando: o mito é uma ordenação humana/social da realidade caótica e uma tentativa de domesticação de diferenças insuperáveis - que se expressam em dualismos. Quanto ao dualismo, a crítica pode ser bem lida no mesmo Dooyeweerd, mas o que nos interessa aqui é que todo dualismo não corresponde à realidade e produz ídolos. Se os estudos do mito estão certos quanto à sua origem, o mito peca por um aspecto fundamental: a natureza, a cultura e o mundo não são caóticos. O mundo foi criado pelo Ser que é pessoal, moral, que o pré-ordenou e estabeleceu leis para os processos que por Ele são sustentados. E aqui, surpreendentemente, temos um aspecto verdadeiro no mito: a Natureza é moral. Moral porque não há uma ordem necessária na criação, antes, D'us a criou por um Pacto (os rabinos judeus quanto entraram em contato com a cultura helênica identificaram logo o princípio ordenador do mundo, o lógos, fazendo uma correção: o logos é a Torá - uma das coisas listadas entre as existentes antes da Criação, ao lado do Messias).

Escrever uma "mitologia cristã" nos parece ser uma tarefa impossível, ou uma incorreção, uma vez que não há mito - a ordenação e explicação não são humanas, sociológicas ou culturais. A própria crença num D'us Eterno, pré-existente à criação é o fim de todos o mitos - dito de outro modo: Genesis 1 não é um relato mítico, é a aniquilação do mito como modelo explicativo. O que resta é uma proximidade entre a ordem natural e ordem moral e ética - nisso encontramos um terreno comum. Devemos a isso, provavelmente, a proximidade estilística entre mitologia e a narrativa bíblica, entre mito e fantasia fantástica cristã.

O perigo que nos ronda, no entanto, é que uma percepção dessas proximidade entre mito e pensamento cristão seja contaminado pela crítica cínica da modernidade ao mito. O que é bastante irônico, uma vez que fora da tríade Criação-Queda-Redenção, todo λογοϛ trasmuta-se em μϋϑοϛ. Suspendendo, então, o premissa moderna da representação, de certa maneira, temos maior proximidade do pensamento mítico que do moderno quanto à natureza da realidade: há uma origem comum, uma "confusão", em relação à moralidade, ética e lei natural - são diferentes quanto aos princípios (são esferas de soberania diferentes), mas provenientes do mesmo vertedouro. Mas como não há como inferir ou deduzir a origem moral, ou melhor, como não há necessidade nenhuma, não há como, pelo lógos natural chegar à ontologia do Ser- não é possível fazer teologia natural. Como nas sociedade tradicionais, onde o conhecimento do mito de origem e fundação depende da transmissão de uma tradição, encontramos outra proximidade.

Tal como figura Lewis em "O retorno do Peregrino", a superação do abismo entre as terras caídas e a ilha da felicidade depende do conhecimento da origem e da narrativa da queda - de como a fissura surgiu. É preciso uma revelação especial, a qual não pode ser obtida pela Natureza - seja pela ausência da necessidade, seja pelo estado caído do homem. Foi preciso que o D'us pessoal, interferindo na história, entregasse a Narrativa, que foi e é mantida por uma Tradição. Sem o conhecimento dessa última, não há como compreender o Mundo, sua criação, queda e redenção - sem ela, nem mesmo há conhecimento verdadeiro.

É desconcertante, mas a questão é, em parte, relacioanada com possuir, ou estar inserido na Tradição correta - manter o maior número possível de conexões com a originalidade por desenvolvimentos ordotoxos. O fato confortante é que essa correção se comprova por resultados apropriados: em Deuteronômio, temos que pela manutenção da memória, pelo cumprimento das ordenanças se manterá a prosperidade, a boa vida - shalom (veja que ainda não está se falando de aspectos soteriológicos, mas de correta percepção da realidade e ação adequada e eficaz).

Bom, isso é um texto, um comentário grande. É melhor que aqui paremos, antes que tome ares de monografia - e isso não queremos antes que se siga longo debate. Cedo agora a tribuna aos demais. Conversemos, então.

23.11.06

Celebração da Liberdade




Esse é um screenshot do meu deskopt rodando Ubuntu 6.06 (Dapper Drake). Linux, por ser um outro paradigma é um pouco difícil de aprender, sobretudo para quem vem de anos de uso/escravidão no Windows da Micro$oft. Se seu problema era preferir o XP porque ele é mais "bonitinho", e que o Linux é muito feio, bom... me desculpe, o screenshot aí em cima desfaz certos preconceitos.

Quanto à dificuldade de uso, é verdade, o Linux exige, mesmo nas distribuições mais voltadas pra usuários finais, como este que vos fala, que o usuário tome seu lugar como parte responsável pelas ações. É incrivel como, ao menos na informática, quanto mais o "componente humano" participa, mais seguro ele fica.

Faça o download do Ubuntu 6.10 (a versão mais recente, chamada Edgy Eft - a Salamandra Hi-tec), ou então do Ubuntu 6.06 (Dapper Drake - o Pato Doméstico Estiloso) que já tem um ciclo de suporte e desenvolvimento. Se não tiver coragem, ou bom senso, e não quiser instalá-lo em seu HD, rode o LiveCD (o mesmo que vc baixou) e tenha a extraordinária experiência de rodar um Sistema Operacional a partir de um CD... (quando mesmo que o Windows vai poder fazer isso?)

Esse blog já tratou sobre questões de software livre e derivações, e convidamos o leitor a ler, caso se interesse:

Desviando-se do mal
Fazendo o papel da Imprensa IV: jornalismo open source

Ah!, claro, se quiser saber mais sobre Linux visite: Ubuntu-br, Viva o Linux!, guia|Foca GNU/Linux, Guia do Hardware (tudo em português).

Abraço.

22.11.06

Quem são esses que voltam como pássaros?


"Assim voltarão os resgatados do Senhor, e virão a Sião com júbilo, e perpétua alegria haverá sobre as suas cabeças" (Is 51.11)

Depois de 27 séculos, desde o distante ano de 701 aE.C., quando o Reino de Israel ou Reino do Norte fora conquistado pelos Assírios e as Dez Tribos do Norte foram dispersadas e perdidas entre as nações, uma das tribos, os Bnei Menashé, retornam à Terra de Israel. Permaneceram como uma pequena população na costa oriental da Índia, e mantiveram preservada sua identidade ancestral e a memória de pertencimento entre os filhos de Jacob, pela observância do Shabbat, da circuncisão dos homens ao oitavo dia de vida, das leis alimentares e de pureza familiar. Durante 27 séculos perseveraram sob a promessa de um dia retornarem à Sião e serem reestabelecidos pela misericórdia de D'us.

Os Bnei Menashé (ou filhos de Manassés) foram "redescobertos" pelo judaísmo ocidental principalmente no século XX. Sua real ligação com as tribos perdidas foi examinada quase à exaustão. Apesar de muitos terem feito Aliyah (retorno a Israel, garantida pelo Estato Judeu a todo judeu de qualquer parte), somente em 2003 foram formalmente reconhecido como judeus em toda a abrangência do termo, decisão executada por uma corte rabíncia organizada pelo Grão-Rabino Sefardita Shlomo Amar - e deu pleno direito de cidadania israelense e direto de retorno a todos eles.

Assim, essa semana, mais de 200 Bnei Menashé (dos 1.000 que nos próximos dias chegarão) aterrisaram em Tel Aviv num vôo da El Al, plenamente reconhecidos em sua identidade e herança judaicas, novamente reunídos à Casa de Jacob.

Isso não é apenas uma curiosidade. É um milagre. É a Mão de D'us tocando a História, outra vez, trazendo os perdidos de Israel entre as nações, preparando o caminho para o retorno do Mashiach para a Casa de Israel, Sua Casa. Bem-vindos filhos de Manassés, nunca mais terão de dizer "ano que vem em Jerusalém".

Am Yisrael Chai. Od Avinu Chai, leOlam vaed.
[o Povo de Israel vive, (a herança de) nossos Pais Vivem, para sempre]

Leia aqui a reportagem do Jerusalem Post.

16.11.06

Os Fraldinhas*

Era uma vez, numa terra muito, muito distante - para lá da última esquina da Terra do Nunca - um grupo de garotinhos. A história deles, obviamente, começa há muito tempo, mas já está há tanto esquecida, que não nos interessa aqui contá-la desde o princípio - apenas precisamos saber que eles escolheram fugir do mundo das gentes grandes, dos adultos, que eram muito chatos e formalistas, para viverem felizes em algum outro lugar onde tudo o que eram forçados a acreditar no mundo "real" fosse inválido: esse novo lugar, Inverídia, era feito pelas suas próprias idéias, um reflexo etéreo, semi-sólido, onde tudo podia mudar e se tornar em outra coisa, fortuitamente ou por conveniência.

Na formação de Inverídia, Os Fraldinhas estabeleceram uma "Regra de Ouro": a única certeza é a incerteza - à qual recorreriam sempre que alguém tentasse estabelecer alguma verdade. Como fundadores de Inverídia, estabeleceram que eles mesmos seriam os juízes que examinariam cada premissa e afirmação e estabeleceriam se era o caso, ou não, de aplicar a Regra de Ouro. Assim estabelecidos, começaram sua Reforma do Mundo e da Natureza.

[breve nota: percebam que Os Fraldinhas não são assim tão inovadores, outros personagens compraram lotes próximos a Inverídia e fizeram seus exercícios de recriação: Emília Rabicó, Marx, Rousseau... mas os empreendimentos não deram muito certo. Algumas ruínas continuam por lá - mas como os castelos de areia estão construídos na cabeça do sujeito...]

O primeiro julgamento em Inverídia foi da Tradição Cristã. É, Os Fraldinhas tiveram algum brio e não chamaram o próprio D'us, uma vez que este não responde sobre aquela - mas chamaram como testemunha de acusação um tal Semvergonhice, que compareceu devidamente travestido de Graça. Invocaram pelo Oráculo Google uns resumos mal feitos de Hegel, Paltão, alguns pré e pós-socráticos e do próprio Kant, que estavam bastante rotos e mal armados em seus trajes improvisados - mas como tudo em Inverídia é meio virtual e desfocado, ninguém notou muito a diferença.

O julgamento ficou truncado por alguns erros processuais e de forma, como a confusão primária entre a noção de certeza bíblica (que compõe a Tradição Cristã) e a certeza epistemológica moderno-cartesiana. Mas foi fácil aplicar uma leitura histórica continuísta e atribuir uma à outra, e tudo ficou resolvido. Alguns pós-socráticos, como os Estóicos, ficaram desconfortáveis em ter seus nomes citados no processo como mantenedores da noção de incerteza e falta de critério, uma vez que, apesar de pessimistas quanto ao sendito da existência (não há nenhum), o Ser é um fato, e portanto sua realidade é inegável, o que torna uma ação e noção moral na condução da vida necessárias. Mas como estavam descompostos (lembrem-se: eram resumos), ficaram calados.

O Sr. Kant se recusou a falar no julgamento alegando saber muito bem que seu sistema filosófico pressupõe que a instância mais humana é a razão natural - que não é suficiente para compreender questões para além do que pode ser analisado racionalmente, recusando apresentar-se ante a qualquer questão metafísica ou teológica. Mas se houver alguma outra instância mais humana, como o Coração (tal como diz Dooyeweerd), seu sistema é pego no contrapé... Como é um homem modesto, Kant soube reconhecer o valor do argumento e retirou-se do debate. Mas ao fazer isso, foi acusado de fundamentalismo pelOs Fraldinhas: ele que havia estebelecido a incerteza, deveria manter-se fiel a ela; tentar pensar em alguma instância que trouxesse acesso e processo de certificação às questões metafísicas e teológicas era incorrer no erro da certeza. Declarado inepto, suas declarações foram retiradas dos autos, e foi convidado a se retirar do Tribunal.

Quando Hegel foi chamado para prestar testemunho, foi ouvido com euforia enquanto descrevia o processo de auto-conhecimento da Razão e revelação rumo ao Absoluto. A síntese como junção que supera tudo o que é tido por certo anteriormente causou urros de prazer nOs Fraldinhas (que eventualmente tiveram que se limpar - essa coisa do estágio freudiano do prazer pelo controle do esfíncter anal pode causar problemas, e como só passa lá pelos 2 ou 3 anos...). Mas quando Hegel se enveredou por coisas como finalidade histórica, teleologia, até sobre o caráter absoluto de uma afirmação final, teve seu depoimento encerrado.

Depois de um breve recesso para a mamadeira, foi chamada a principal testemunha: Paulo. Entrou amordaçado, algemado e preso em camisas de força. Foi-lhe dito que se dissesse alguma coisa fora do combinado, os eletrodos presos aos seus testículos e troncos neurais seriam ativados em capacidade máxima. Assim mesmo ele conseguiu ler no teleprompt os trechos escolhidos de Romanos e Gálatas (devidamente editados), falando sobre a Dona Graça e a Demônio-Lei. Houve um certo constrangimento, mas... bom, aquilo era Inverídia, que fazer? O problema da crítica textual e exegese a que os textos são passíveis não eram problema: quem sabe grego em Inverídia?

A apoteose aconteceu quando a Graça foi chamada para testemunhar. Era estranho porque estava desacompanhada de Obediência (companheira inseparável), e Lei estava vestida em trajes descompostos, horrendos e se encontrava terrivelmente cabisbaixa (seguiu para uma gaiola onde era atiçada com teasers por dois terríveis Fraudinhas - crianças podem ser terríveis torturadores, os sapinhos que o digam).

[breve nota: corre um boato que Obediência foi abatida e devorada numa churrascaria chamada "Obras da Carne", de propriedade de um tal C. F., perto da Estação da Garça. Não se sabe nem se comprovou o envolvimento dOs Fraldinhas - mas com tanta incerteza, todos são suspeitos]

A Graça revelou que o D'us do Antigo Testamento era uma farsa judaica, no máximo um artifício temporário transformado em maldade pelos terríveis religiosos e fariseus de toda espécie. Negou que sua finalidade era que aqueles a quem fosse dada pudessem cumprir as obras de justiça a que foram destinados desde a eternidade. Na verdade, toda a verdade era que o universo e D'us eram imorais ou amorais. Como o D'us que intervém na História dando orientações cívicas, morais, ordenando o mandado cultural, que publicou a Lei antes da Criação (ora, o que é a Lei senão a Palavra?), era um artifício narrativo, tudo o que resta é incerteza e dúvida. Tudo o que todos têm a fazer é por em suspenção todo e qualquer juízo, e render-se aos seus cuidadados (da Graça).

Houve choro e muita comoção. Depois gritos de alegria e triunfo. Inverídia tornara-se real sob o resultado de um juízo - nem mesmo a contradição com a Regra de Ouro foi um problema, afinal, aquilo era Inverídia, e seus súditos, nécios envoltos em seus trapos tomados por mantos de sabedoria real. A entrada em seus termos é fácil, larga e sofisticada; a saída, incerta. Inverídia hoje é um labirinto por onde vagam figuras que, com uma das mãos a sustentar o queixo e de testa enrrugada, exibem sua melancolia, desconforto e desespero, cheios de looser-pride. Não conhecem a história do que condenam, e falam como se falassem de coisas grandes e muito sábias. Mas o que importa se não é assim? Estão em Inverídia, e usam fraldas.

*Esse texto é uma ficção, a atribuição de qualquer semelhança ou relação com a polêmica desenvolvida aqui (vide comentários), aqui, aqui e aqui, é de total responsabilidade do leitor (mas o autor espera que este o faça).

8.11.06

Antroponotas políticas sobre as eleições americanas

Os EUA são uma democracia, isso nem mesmo seus maiores inimigos podem negar. Ser uma democracia está longe de significar ser justo, misericordioso, cordial, amistoso, íntegro, generoso. E nenhum país possui essas qualidades por ser democrático. Democracia, como os politicólogos nos têm ensinado, é um processo que inclui, tenta fazer o maior número possível de participantes no processo decisório: como seria muito custoso que todos os cidadãos das democracias modernas se pronunciassem num gigantesco debate, fazemo-lo via representação. Daí o termo técnico democracia representativa.

Os EUA vem fazendo isso (escolhendo representantes por meio do voto de todo cidadão) há mais de 200 anos. É um pioneiro, porque as experiências parlamentares européias, mesmo a inglesa, esbarram até recentemente na presença política de poderes não democraticamente instituídos, como a Coroa ou nobreza (há o caso do parlamento islandês, que tem, pasme, quase 1100 - isso mesmo: mil e cem - anos, com uma breve interrupção entre 1799 e 1845. Mas é tido como uma "divisão do corpo do Rei", e, além do mais, a Islândia é um pedaço de gelo no Atlântico Norte, e qualquer coisa acima da Escócia perde o status de real... é por isso que o Estado de bem estar social sueco é fábula, que o Noel mora por lá, e que nenhum brasileiro ganhou um Nobel).

Entretanto, todo esse pioneirismo e progressismo pode ter dado origem a um orgulho da (sic) tradição do novo. Como a democracia americana foi uma inovação em termos de aplicação dos pensamento e saberes de uma nova época, foi, como bem percebeu Tocqueville e Arendt, uma origem (no sentido mitológico), um gênesis, com direito a heróis civilizadores e legisladores (como ele dizem? ahn... Ah,sim! Os Pais Fundadores). E em mitos não se toca. Mudar o relato do mito de origem e de criação é perder o controle sobre sua eficácia. Como a moderna antropologia nos mostrou (Mauss, Lévi-Strauss, etc.), a tradição transmite o mito e seu poder, e as palavras não formam primariamente uma narrativa, antes, são uma fórmula mágica (quando um feiticeiro conta/canta como uma erva curativa surgiu, ou como um herói dominou seu efeito de cura, não está informando ou entretendo seu cliente e o público - apesar de também fazer isso - , mas invocando o próprio poder da planta - mobilizando-o). Por conseguinte, o rito preserva a intregridade do mito e sua forma operativa: a estética é o conservante do conhecimento (e da verdade).

Assim, é preciso preservar as formas rituais d'antes. Assim, em nome dos princípios de liberdade e auto-governo, quem decide as formas como se procederá a votação nos EUA, até hoje, são os distritos, ou condados. E um representante de cada um deles leva a decisão da localidade para Uóxintom (grafei assim pra ficar mais indígena...): tente imaginar aquele homem cheio de moralidade cívica e senso de dever patriótico que, findada as eleições, cavalgava incansável, dia e noite, levando o resultado das urnas até o local da fundação, de onde os homens livres do Novo Mundo surgiram. É uma imagem forte. Inebriante.

Em nome do orgulho, ou senso histórico, esse processo eleitoral obsoleto foi mantido. Há uma soberania da localidade, que inclusive aproveita que seus moradores virão às urnas para submeter plebicitos, referendos e consultas sobre temas domésticos. É bonito, mas antigo e inadequado.

Inadequado porque as Treze Colônias se tornaram a América. Inadequado porque o voto que o fazendeiro de Ohio dá aos Republicanos ultra-conservadores tendo em vista a manutenção da proibição do casamento gay ou de subsídios à produção agrícola, dá legalidade para bombas sobre o Afeganistão, para o treinamento de milícias reacionárias estrangeiras que adiante se voltam contra os EUA e outras democracias. Inadequado porque esse localismo insiste em manter o mundo do lado de fora. Inadequando porque um direito que para ser mantido viola os mais básico princípios de dignidade para tantos outros não é um direito.

Mas o método da tradição foi mantido, e muita gente graúda ganha com isso. Entretanto muita gente no resto do mundo (que é quase o mundo inteiro) sente as conseqüências e não tem outra saída que inserir o global na agenda política para corrigir as mazelas locais. Não é à toa que as democracias ou semi-democracias ao redor do mundo estão assoladas por neo-populistas, de direita e de esquerda, que pelo discurso virulento contra os Estados Unidos e a globalização virulenta sobem ao poder. Por mais que as pessoas saibam que "roupa suja se lava em casa", também sabem que para manter-se limpo é preciso não deixar entrar sujeira de fora - senão, não há quem agüente.

Em 1776 os Estados Unidos eram uma ameaça ao Antigo Regime, mas estava protegido pelo Atlântico, e as convulsões na própria Europa desviaram a atenção de seus adversários. Agora que as convulsões estão em todo lugar e o Atlântico foi encolhido, transformando num "mar interno" (como o Pacífico está se tornando), e, em algum sentido, os EUA representam o status quo, resolveram construir um muro. Há uma burrice teimosa: não há mais como ignorar o mundo. Átila ad portas.

E já que estamos falando em tradição, mito e rito, há um princípio na magia chamada contágio: como tudo é permeado pela mesma essência, o "mana" ou "orenda", dependendo do grupo lingüístico, as coisas se afetam a todo o tempo: no local estão, agora, presentes todos ou outros locais. O que se faz aqui, reflete lá. E se lá proferem una maldición, desanda o leite das vacas aqui, se una bendición, abre-se o ventre das fêmeas. Não há como ignorar as afetações e afetamentos. Não há como dirimir o aspecto relacional das ações humanas.

Não se pode negar as causas e responsabilidades locais na Venezuela, Iran, Bolívia, Argentina, Brasil, Nicarágua que levaram à ascensão de Chaves, Ahmadinejad, Morales, Kirshner, Lula e Ortega. Mas da mesma maneira, não foi por causas meramente locais que Keith Ellison foi eleito o primeiro mulçumano a ocupar uma cadeira no Congresso Americano - para início de conversa seu base de apoio eleitoral foi a comunidade somali (!) em Minnesota (!!). A dualidade local/global é um paradigma superado pela percepção infinitesimal: na mais elementar decisão ou processo, estão presentes e se afetam todos os demais elementos do sistema.

Mas não se pode tocar na tradição: ela é a autoridade que transmite a forma do rito e, portanto, a eficácia da magia. E como nos ensinou Durkheim, magia, religião, enfim, o sagrado, ao final (ao menos em termos sociológicos), é moralidade, são as representações que unem, são o cimento social. Nisso não se pode tocar, sob a pena de anomia.

Não se o que se quer é presevar, manter-se inalterado. Mas, como outro antropólogo, Sahlins, ensinou, é permanecendo o mesmo que mais se transforma. Os Estados Unidos mudarão, por mais que resistam. Mudar não é uma escolha. O que se pode escolher é a direção da escolha. Reforma. Não há vergonha nenhuma nisso, nem fraquesa. Há justiça, misericordia, cordialidade, íntegridade, generosidade, e, sobretudo, humildade. Mas essas são qualidades que não se possui por ser uma democracia. Provavelmente, a recíproca seja verdadeira, ou verossímil.

Por fim, parece que restam duas opções: reforma (quem lê, entenda), ou tirania: pois ao que presenciamos, não há democracia, por mais estritamente processual que seja, que resista.

* Modificado em 10 de novembro.

6.11.06

...cuja altura era de sessenta côvados.

Quanto a indústria do cigarro tornou-se persona non grata nos Estados Unidos, por volta do final dos anos 80 e durante os 90, quando fumantes e o Estado moveram ações indenizatórias que pediam reparações por danos morais e à integridade física, e pelos prejuízos causados à saúde pública; no auge dessa "derrocada", o diretor Michael Mann apareceu com "O informante" (The Insider, EUA, 1999).

Mais do que um filme-denúncia contra a indústria tabagista, permeada por alguma ilustração do jornalismo atrelado a interesses corporativos, "O informante" é uma fábula sobre a condição do homem - não na modernidade contemporânea, mas em qualquer tempo. Uma tragédia. Por vezes, as tragédias (gregas) trataram de casos em que um homem, ser finito que deve se conformar com seu destino, se revolta contra sua condição, rompendo com a ordem divinamente estabelecida (lembrando que ordem social, religiosa fazem partes da divida ordenação do mundo), ascendendo a um outro nível, maior que aquele em que devem viver os homens. Essa atitude constitui-se, por outro lado, uma ofensa aos deuses, e sempre é punida (claro, senão, não teríamos uma tragédia...).

Os gregos deram o nome de hubris (ou hybris) para esse comportamento. A hubris era o rompimento da "clausura" ocupada por cada homem no tecido ordenado do mundo (lembra que a vida de um homem é representada por um fio ou linha manipulado pelas Moiras - as impassíveis fiadoras do destino?); portanto a hubris era hamartia (erro), que, por conseguinte, provocava nemesis (destruição). Como era um ato destrutivo contra a ordem, a hubris determinava a própria desgraça do personagem nas tragédias. Os homens estavam sempre debaixo dessa tensão aterradora entre intentar contra a ordem e os deuses e causar sua própria ruína.

Em "O informante" temos uma reedição do mesmo modelo narrativo da tragédia grega: homens lutam e desafiam potências soberanas que estão além de suas forças, as Corporações. É uma batalha que, antes de começar está perdida. Ao confrontar essas forças, confrontam suas próprias posições, pondo-se em risco. E não resta outra escolha senão continuar, levando toda ação às últimas conseqüências, seja qual for o custo.

Mas não fazemos crítica de cinema aqui, muito menos ensaios comparativos. Nosso paradigma, e nome, é o contra senso. Pois bem, o que queremos realmente dizer é que o homem contemporâneo luta contra novas e terríveis forças, deuses e ídolos: nos altares do Mercado, as Coorporações estão entronizadas. Dominam, regulam e determinam a vida de seus súditos e servos. Sua onipotência, onisciência e onipresença se tornam mais absolutas na medida em que estabelecem e alargam seu templo profano (o mercado), destruindo os outros domínios e escravisando seus recursos para cumprir seus desígnios malígnos de dominação. Num sentido tillichiano (ajuda aê Guilherme!), são forças demoníacas - são pura destruição e desordem.

Durante muito tempo a internet foi livre. Era um "lugar" de liberdade. Veja que mesmo a frase anterior exemplifica o que queremos dizer: a web perverteu ou recriou o "topos", dobrou o espaço. Não pertencia a nínguém, (e melhor) a nenhum Estado. Ainda é assim. Mas, provavelmente, por pouco tempo. Como todo enclave livre, está ameaçado.

Em sua primeira década de vida civil, só os visionários enxergaram as potencialidades da internet. Essa qualidade coletiva, esse "é de todo mundo" afastou o mercado num primeiro momento - ele odeia o que não multiplica patentes, não rende royalties. O próprio Bill Gates e a Micro$oft custaram a levar a web a sério. Mas quando as possibilidades e vantagens ficaram claras para o Mercado e seu panteão coorporativo, iniciou-se o processo de demolição do bazar ou feira para transformá-los em mais um instrumento de dominação à serviço dos propósito dos ídolos mercadológicos.

Com os mesmos argumentos apresentados pelos cowboys e arautos das Co. para invadir países e depor governos (não estou falando necessarioamente de Iraque e etc., lembrem-se de Allende e do Chile em 73), sob as alegações de vandalismo e do aumento da ocorrência dos chamados cybercrimes, os supostamente maiores alvos dessas práticas reagiram e puseram em operação seus planos de domínio, em lugar de ordenação democrática. Segundo a Folha de São Paulo, através do Senador Eduardo Azeredo (PSDB/MG) foi apresentado para votação um projeto de lei que exige a identificação de todo internauta antes de realizar operações que impliquem interatividade (como enviar um e-mail, criar blogs, etc.) - ou seja, virtualmente qualquer coisa na internet. Esse projeto foi resultado do forte lobby dos grandes potestades mercadológicas que se assenhoraram do Brasil: os bancos e operadoras de cartão de crédito.

Não bastasse a falta de investimento técnico, boa vontade e seriedade no atendimento ao consumidor e cidadão (veja: o site do Unibanco só opera em plataformas Windows - e eles ainda dizem que isso "é para a segurança do cliente"...), os bancos passaram por cima de todas as instâncias de discussão e calaram todas as outas esferas que têm, também, jurisdição sobre a questão e serão impactadas pela medida, caso a lei seja aprovada e sancionada. É evidente que essa lei não impedirá que cybercriminosos continuem a cometer delitos, uma vez que o que os detêm são sistemas de proteção eficientes, não registros, que são como senhas de identificação que podem ser quebradas ou ludibriadas. O maior prejudicado, intencionalmente ou não, é o próprio fluxo da rede. Imagine se esse blog começa a causar incômodos a alguma divindade ou a dizer coisas desinteressantes para ou sobre o governo ou quem quer que seja? Se isso acontecesse algum dia (dizer alguma coisa que realmente incomode), bastaria bloquear meu acesso. Ou fazer algo mais sutil: impedir que certos IPs tenham acesso a certar páginas... Enfim, as possibilidades de controle são muito grandes. Lembro-me que um amigo, que cursa direito, me contou que há anos atrás, no início da popularização da internet no Brasil, uma internauta que acessava a rede via AOL pediu um habeas corpus ao juiz, porque o provedor estava restringindo sua liberdade de ir e vir na internet (a AOL bloqueava arbitrariamente o acesso de seus usuários a determinadas páginas). Uma prévia interessente, não?

O mercado está desferindo um golpe para aumentar sua onisciência e controle. Mostra o poder de seu braço ao aniquiliar outras vozes. Demonstra a quem quiser ver, que tudo quer e tudo pode. Quem será agora, que coragem terá para provocar a "nemesis", para perturbar a ordem idólatra, mesmo que isso lhe custe a vida? Quem?


Nota: esse post deve muito de seu valor, se há algum, às conversas com o Guilherme, ao debate corrente na lista Kuyperiana e, sobretudo, a esse ensaio de Eduardo Valente sobre "O Informante". O título é uma referência a Daniel 3:1.